São várias as estratégias para se estudar aspectos moleculares das doenças
hereditárias, pois algumas ainda não tiveram os genes responsáveis identificados. Em outras,
apesar de o gene causador ter sido identificado, ocorrem tantos tipos de mutações diversas
que se torna difícil desenvolver um único teste para diagnóstico. Contudo, para a maioria dos
casos, é possível fazer aconselhamento genético seguro e também diagnóstico pré-natal,
desde que se conheça pelo menos a localização aproximada do gene no cromossomo.
Os testes diagnósticos baseados em análise de DNA são realizados em crianças e adultos com
relativa facilidade, a partir de procedimentos de extração de DNA de sangue periférico. Um
volume de 5ml de sangue fornece DNA mais do que suficiente para vários testes, sendo a
sobra do DNA estocada para estudos futuros. Se necessário, o DNA pode ser extraído a partir
de amostras muito menores de sangue, como, por exemplo, 500µl, caso o objetivo seja estudar
o DNA através da PCR.
A objetivo básico das técnicas de diagnóstico pré-natal é obter amostras de tecido
fetal para análises bioquímicas, de DNA ou de cromossomos. A coleta de amostras de
vilosidade corônica, de líquido amniótico ou mesmo de sangue fetal através da cordocentese
permite obter DNA em quantidade suficiente para análises laboratorial. A
vilosidade coriônica é a parte da futura placenta de origem fetal que, localizada fora do
embrião, tem constituição genética igual à do feto. Na amniocentese, são coletadas no líquido
amniótico as células chamadas amniócitos que podem ser submetidas a estudos. A coleta é
feita transabdominalmente, geralmente a partir da 16a
semana de gestação, através de uma
seringa especial guiada por ultrassom. Porém, pode ser necessário fazer uma cultura de
células para se obter material suficiente para análise, o que torna este estudo mais demorado.
A cordocentese consiste na coleta de sangue fetal através de uma agulha introduzida nos
vasos do cordão umbilical. Entre essas técnicas de coleta, a amostra de vilosidade coriônica é
a menos invasiva e a mais precoce (realizada entre a 8a e a 12a)
Portanto, ela tem sido a preferida na obtenção de material para estudos de DNA.
ESCOLHA DE SEXO
Uma outra questão ética é a possibilidade de se escolher o sexo de um futuro bebê. Na Inglaterra, Statham et alii (1993) enviaram a um grupo de cerca de 2.300 grávidas um questionário com as seguintes perguntas: você prefere um menino, uma menina ou é indiferente? A análise dos resultados mostrou que se a população da Grã-Bretanha pudesse escolher o sexo de seus futuros filhos isto não causaria um desbalanceamento sexual. Já na China, onde a maioria dos casais só tem um descendente, o aborto seletivo de fetos do sexo feminino já criou uma desproporção sexual gigantesca em favor do sexo masculino. E no Brasil, o que aconteceria se os casais pudessem optar pelo sexo de seus filhos?
Por outro lado, a possibilidade de se determinar o sexo de embriões antes da sua implantação (diagnóstico pré-implantação na fertilização "in vitro") para casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino (como a hemofilia ou a distrofia de Duchenne) evitaria o diagnóstico pré-natal e o sofrimento de ter de interromper uma gestação no caso de fetos portadores. A seleção sexual de embriões por essa técnica, no entanto, é ética no caso de casais sem risco genético aumentado, que quiserem recorrer a essa prática somente para escolher o sexo de um futuro bebê? Em algumas sociedades, a herança material só passa de pai para filho se ele tiver descendentes do sexo masculino, isto é, não ter um filho varão pode significar perder toda a herança da família e ficar reduzido à pobreza. Não é difícil imaginar que a procura de testes pré-implantação para determinar o sexo deva ser muito grande nesses casos. Seria ético negar essa possibilidade em uma situação como essa?
DOENÇAS GENÉTICAS
No caso de doenças genéticas, a identificação de genes deletérios é fundamental para o diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção (pela identificação de portadores com risco de virem a ter filhos afetados e por diagnóstico pré-natal) e para futuros tratamentos.
Do ponto de vista ético, entretanto, a detecção de portadores de genes deletérios pode ter conseqüências totalmente diferentes, pois distinguem-se basicamente dois grupos: os portadores assintomáticos, nos quais o risco de uma doença genética só existe para a prole, como no caso da herança autossômica recessiva ou recessiva ligada ao X; e os portadores sintomáticos ou pré-sintomáticos, nos quais o risco existe tanto para a prole e para si mesmos, como o caso da herança autossômica dominante.
Detecção de Portadores Assintomáticos de Genes Deletérios
Em relação a testes genéticos neste grupo, os exemplos seguintes levantam outras questões, tais como: Até onde vai o nosso direito de interferir? Devemos sempre dizer a verdade? Podemos nos negar a fazer um teste genético?
Uma consulente vem procurar um serviço de Aconselhamento Genético para diagnóstico pré-natal. O levantamento da genealogia mostrou que seu pai é hemofílico, o que significa que ela é portadora assintomática deste gene e portanto um feto, de sexo masculino, terá uma probabilidade de 50% de vir a ser afetado por hemofilia. Inesperadamente, o estudo de DNA da consulente e de seus pais revela que "o suposto pai hemofílico" não é na realidade o seu pai biológico. Isso significa que a consulente não é portadora do gene da hemofilia e portanto não existe risco para esta ou futuras gestações, o que dispensa a realização de qualquer teste genético. É ético revelar à consulente que "seu pai não é seu pai" e arriscar a desestruturação de uma família aparentemente unida? Ou, por outro lado, é ético submeter a paciente a um exame pré-natal desnecessário, sabendo-se de antemão que não somente esta como futuras crianças dessa consulente não têm risco de hemofilia?
Em outro caso, a consulente tem um filho afetado por distrofia de Duchenne (DMD), uma doença letal grave, cujos afetados raramente ultrapassam a terceira década. O exame de DNA revela que tanto a consulente como sua mãe são portadoras do gene da DMD e, portanto, há um risco de 50% de virem a ter descendentes de sexo masculino com DMD. Durante o Aconselhamento Genético (AG) a consulente é informada sobre seu risco genético e que suas tias, primas e sobrinhas, também em risco de serem portadoras do gene da DMD, podem recorrer ao exame de DNA para tentar prevenir o nascimento de novos afetados. A consulente, entretanto, nega-se terminantemente a alertar seus familiares sobre esse risco.
Pergunta-se: É ético deixar que pessoas em risco ignorem essas informações que poderiam prevenir o nascimento de uma criança afetada por uma doença genética grave? Por outro lado, temos o direito de invadir a privacidade dos outros? Ou quebrar o princípio da confidencialidade deve ser uma norma no AG?
Um terceiro exemplo ilustra uma situação ainda mais complicada. Uma consulente adolescente é encaminhada para diagnóstico pré-natal pois tem dois irmãos afetados por DMD. O estudo de DNA revela que ela é portadora do gene da DMD e, portanto, existe 50% de risco de que venha a ter um filho afetado. Antes de realizarmos o estudo de DNA do feto, entretanto, somos informados de que há uma suspeita de que o pai biológico da criança seria o próprio pai da consulente. Somos consultados sobre a possibilidade de confirmar essa suspeita, pelo exame de DNA, sem o conhecimento da consulente. Do ponto de vista genético, o risco de uma criança, fruto de uma relação incestuosa (pai-filha), ser afetada por uma doença genética (retardo mental, doenças recessivas ou malformação congênita) é da ordem de 50%, independentemente do sexo. Ou seja, é um risco tão grande quanto o da DMD, mas neste caso sem possibilidades de um diagnóstico pré-natal. As grandes questões são: a) é ético realizar um exame de DNA sem o prévio consentimento dos interessados?; b) ou é mais ético não realizar esse exame, mesmo sabendo do alto risco para o feto e da possibilidade, neste caso, de se interromper a gestação com amparo legal?
Testes Moleculares em Doenças Dominantes de Início Tardio. Doenças Ainda sem Tratamento: o Exemplo dos Genes Dinâmicos
Em doenças como a Coreia de Huntington (CH) ou a Distrofia Miotônica de Steinert (DMS), os portadores, além de manifestar a patologia, têm um risco de 50% de vir a transmitir o gene defeituoso para a sua descendência. Na CH [causada por uma expansão do número de repetições (CAG)n no gene huntingtina (Kremer et alii, 1994)] o quadro clínico geralmente tem início após a quarta ou quinta década, e leva a uma demência progressiva e irreversível.
Na DMS [causada por uma expansão de repetições (CTG)n no gene da proteína-quinase da distrofia miotônica (Brook et alii, 1992)] a situação é um pouco diferente, pois o quadro clínico é muito variável. Indivíduos portadores do gene podem ter como único sinal clínico uma calvície precoce ou catarata em idade avançada, enquanto no outro extremo existem aqueles que apresentam um quadro grave, com início na infância, manifestado por: retardo mental, desenvolvimento, fraqueza e degeneração muscular e esterilidade no sexo masculino. A forma clássica, a mais comum, tem início em geral na idade adulta.
As questões éticas que se colocam são: quais seriam os prós e os contras de se testar crianças assintomáticas, descendentes de afetados, e saber de antemão se elas são portadoras do gene da CH e DMS? Os defensores do teste pré-sintomático argumentam que saber precocemente seria importante na escolha da futura profissão. Por exemplo, poderiam ser evitadas aquelas que requerem habilidade manual, pois é a primeira a ser comprometida no caso da DMS. Por outro lado, vale a pena angustiar-se antecipadamente e saber que se tem uma doença para a qual não existe cura? A pesquisadora Nancy Wexler, cuja mãe morreu de CH pergunta: você quer saber quando e como vai morrer?
Após inúmeras discussões éticas internacionais a respeito, o consenso foi não realizar testes pré-sintomáticos em crianças, com risco para doenças genéticas de manifestação tardia, para as quais ainda não há tratamento. O argumento mais forte é que ao testar crianças assintomáticas estaremos negando-lhes o direito de decidir, quando adultas, se querem ou não ser testadas. A nossa experiência pessoal mostra que essa conduta talvez seja a mais adequada, pois recentemente vários jovens adultos "em risco" foram informados de que já existia um teste de DNA para confirmar se eram ou não portadores do gene. Nenhum deles, no entanto, quis se submeter ao teste, o que mostrou que "viver na incerteza" talvez seja mais tolerável do que o risco de "ter certeza".
Genes de Risco para Doenças com Possível Tratamento: o Exemplo dos Genes BRCA1 e BRCA2 de Suscetibilidade para Câncer de Mama Hereditário
Mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 têm um risco de cerca de 80% de desenvolver câncer de mama e um risco aumentado para câncer de ovário (Ponder, 1997). A identificação desses genes levou vários laboratórios a oferecer testes de DNA (a custos altíssimos) à população feminina, supostamente para identificar as pessoas portadoras de mutações nesses genes e poder oferecer um tratamento preventivo àquelas com resultados positivos. Para as mulheres com história familiar de câncer de mama a detecção precoce pode ser muito importante para o tratamento preventivo. Entretanto, a questão ética é se esses testes devem ser feitos na população feminina em geral. Isso porque o risco global (life time risk) que uma mulher, sem história familiar, tem de desenvolver um câncer de mama ao longo da vida é da ordem de 10%, enquanto o câncer hereditário constitui apenas 1-2% dos casos. Assim, é dez vezes mais provável que, se uma mulher vier a desenvolver um câncer de mama, ele não esteja relacionado a mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. A questão ética é: será que uma mulher cujo teste não revelou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 sabe disso ou vai ficar tranqüila achando que está livre do risco de ter câncer de mama? Além disso, como existem centenas de mutações patológicas ao longo desses genes (e é ainda inviável testar todas elas), os laboratórios testam apenas as mais comuns, o que levanta outra questão: sabemos exatamente o que está sendo testado?
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E O PROBLEMA ÉTICO DA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO
Os problemas éticos relacionados com o diagnóstico pré-natal e interrupção de gravidez de fetos portadores de genes deletérios também têm sido amplamente discutidos. No caso de doenças letais (na primeira ou segunda décadas) ou as incompatíveis com uma vida independente (como aquelas que causam um retardo mental profundo), a decisão para um casal em risco de interromper uma gestação é mais fácil. Por outro lado, para aquelas de início tardio ou prognóstico indefinido, como a CH ou a DMS, o questionamento é enorme. Alguns indivíduos alegam que não querem transmitir esse gene para a sua descendência, mas será que não existirá uma cura definitiva nas próximas décadas? Ou, podemos garantir que um filho nosso terá uma vida saudável por muitas décadas?
É fundamental salientar que vários centros do mundo que realizam diagnóstico pré-natal mostraram que a legislação a favor da interrupção da gestação no caso de fetos certamente portadores de genes deletérios tem reduzido significativamente o número de abortos em famílias com risco genético. Isso porque muitos casais decididos a interromper uma gravidez no caso de um feto "em risco" deixaram de abortar quando o diagnóstico pré-natal de certeza comprovou um feto normal para aquela doença. De fato, no nosso laboratório, onde já foram realizados mais de 100 exames de diagnóstico pré-natal em casais em risco (para diferentes formas de distrofias musculares, atrofia espinhal e fibrose cística), somente cerca de 10% foram diagnosticados como afetados. Portanto, o diagnóstico pré-natal de certeza e a possibilidade do aborto terapêutico têm salvado inúmeras vidas normais. Por isso a importância fundamental de discussões éticas em torno da legalização da interrupção da gestação no caso de doenças graves ou incuráveis, pois as nossas leis certamente não têm acompanhado os avanços das pesquisas
hereditárias, pois algumas ainda não tiveram os genes responsáveis identificados. Em outras,
apesar de o gene causador ter sido identificado, ocorrem tantos tipos de mutações diversas
que se torna difícil desenvolver um único teste para diagnóstico. Contudo, para a maioria dos
casos, é possível fazer aconselhamento genético seguro e também diagnóstico pré-natal,
desde que se conheça pelo menos a localização aproximada do gene no cromossomo.
Os testes diagnósticos baseados em análise de DNA são realizados em crianças e adultos com
relativa facilidade, a partir de procedimentos de extração de DNA de sangue periférico. Um
volume de 5ml de sangue fornece DNA mais do que suficiente para vários testes, sendo a
sobra do DNA estocada para estudos futuros. Se necessário, o DNA pode ser extraído a partir
de amostras muito menores de sangue, como, por exemplo, 500µl, caso o objetivo seja estudar
o DNA através da PCR.
A objetivo básico das técnicas de diagnóstico pré-natal é obter amostras de tecido
fetal para análises bioquímicas, de DNA ou de cromossomos. A coleta de amostras de
vilosidade corônica, de líquido amniótico ou mesmo de sangue fetal através da cordocentese
permite obter DNA em quantidade suficiente para análises laboratorial. A
vilosidade coriônica é a parte da futura placenta de origem fetal que, localizada fora do
embrião, tem constituição genética igual à do feto. Na amniocentese, são coletadas no líquido
amniótico as células chamadas amniócitos que podem ser submetidas a estudos. A coleta é
feita transabdominalmente, geralmente a partir da 16a
semana de gestação, através de uma
seringa especial guiada por ultrassom. Porém, pode ser necessário fazer uma cultura de
células para se obter material suficiente para análise, o que torna este estudo mais demorado.
A cordocentese consiste na coleta de sangue fetal através de uma agulha introduzida nos
vasos do cordão umbilical. Entre essas técnicas de coleta, a amostra de vilosidade coriônica é
a menos invasiva e a mais precoce (realizada entre a 8a e a 12a)
Portanto, ela tem sido a preferida na obtenção de material para estudos de DNA.
ESCOLHA DE SEXO
Uma outra questão ética é a possibilidade de se escolher o sexo de um futuro bebê. Na Inglaterra, Statham et alii (1993) enviaram a um grupo de cerca de 2.300 grávidas um questionário com as seguintes perguntas: você prefere um menino, uma menina ou é indiferente? A análise dos resultados mostrou que se a população da Grã-Bretanha pudesse escolher o sexo de seus futuros filhos isto não causaria um desbalanceamento sexual. Já na China, onde a maioria dos casais só tem um descendente, o aborto seletivo de fetos do sexo feminino já criou uma desproporção sexual gigantesca em favor do sexo masculino. E no Brasil, o que aconteceria se os casais pudessem optar pelo sexo de seus filhos?
Por outro lado, a possibilidade de se determinar o sexo de embriões antes da sua implantação (diagnóstico pré-implantação na fertilização "in vitro") para casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino (como a hemofilia ou a distrofia de Duchenne) evitaria o diagnóstico pré-natal e o sofrimento de ter de interromper uma gestação no caso de fetos portadores. A seleção sexual de embriões por essa técnica, no entanto, é ética no caso de casais sem risco genético aumentado, que quiserem recorrer a essa prática somente para escolher o sexo de um futuro bebê? Em algumas sociedades, a herança material só passa de pai para filho se ele tiver descendentes do sexo masculino, isto é, não ter um filho varão pode significar perder toda a herança da família e ficar reduzido à pobreza. Não é difícil imaginar que a procura de testes pré-implantação para determinar o sexo deva ser muito grande nesses casos. Seria ético negar essa possibilidade em uma situação como essa?
DOENÇAS GENÉTICAS
No caso de doenças genéticas, a identificação de genes deletérios é fundamental para o diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção (pela identificação de portadores com risco de virem a ter filhos afetados e por diagnóstico pré-natal) e para futuros tratamentos.
Do ponto de vista ético, entretanto, a detecção de portadores de genes deletérios pode ter conseqüências totalmente diferentes, pois distinguem-se basicamente dois grupos: os portadores assintomáticos, nos quais o risco de uma doença genética só existe para a prole, como no caso da herança autossômica recessiva ou recessiva ligada ao X; e os portadores sintomáticos ou pré-sintomáticos, nos quais o risco existe tanto para a prole e para si mesmos, como o caso da herança autossômica dominante.
Detecção de Portadores Assintomáticos de Genes Deletérios
Em relação a testes genéticos neste grupo, os exemplos seguintes levantam outras questões, tais como: Até onde vai o nosso direito de interferir? Devemos sempre dizer a verdade? Podemos nos negar a fazer um teste genético?
Uma consulente vem procurar um serviço de Aconselhamento Genético para diagnóstico pré-natal. O levantamento da genealogia mostrou que seu pai é hemofílico, o que significa que ela é portadora assintomática deste gene e portanto um feto, de sexo masculino, terá uma probabilidade de 50% de vir a ser afetado por hemofilia. Inesperadamente, o estudo de DNA da consulente e de seus pais revela que "o suposto pai hemofílico" não é na realidade o seu pai biológico. Isso significa que a consulente não é portadora do gene da hemofilia e portanto não existe risco para esta ou futuras gestações, o que dispensa a realização de qualquer teste genético. É ético revelar à consulente que "seu pai não é seu pai" e arriscar a desestruturação de uma família aparentemente unida? Ou, por outro lado, é ético submeter a paciente a um exame pré-natal desnecessário, sabendo-se de antemão que não somente esta como futuras crianças dessa consulente não têm risco de hemofilia?
Em outro caso, a consulente tem um filho afetado por distrofia de Duchenne (DMD), uma doença letal grave, cujos afetados raramente ultrapassam a terceira década. O exame de DNA revela que tanto a consulente como sua mãe são portadoras do gene da DMD e, portanto, há um risco de 50% de virem a ter descendentes de sexo masculino com DMD. Durante o Aconselhamento Genético (AG) a consulente é informada sobre seu risco genético e que suas tias, primas e sobrinhas, também em risco de serem portadoras do gene da DMD, podem recorrer ao exame de DNA para tentar prevenir o nascimento de novos afetados. A consulente, entretanto, nega-se terminantemente a alertar seus familiares sobre esse risco.
Pergunta-se: É ético deixar que pessoas em risco ignorem essas informações que poderiam prevenir o nascimento de uma criança afetada por uma doença genética grave? Por outro lado, temos o direito de invadir a privacidade dos outros? Ou quebrar o princípio da confidencialidade deve ser uma norma no AG?
Um terceiro exemplo ilustra uma situação ainda mais complicada. Uma consulente adolescente é encaminhada para diagnóstico pré-natal pois tem dois irmãos afetados por DMD. O estudo de DNA revela que ela é portadora do gene da DMD e, portanto, existe 50% de risco de que venha a ter um filho afetado. Antes de realizarmos o estudo de DNA do feto, entretanto, somos informados de que há uma suspeita de que o pai biológico da criança seria o próprio pai da consulente. Somos consultados sobre a possibilidade de confirmar essa suspeita, pelo exame de DNA, sem o conhecimento da consulente. Do ponto de vista genético, o risco de uma criança, fruto de uma relação incestuosa (pai-filha), ser afetada por uma doença genética (retardo mental, doenças recessivas ou malformação congênita) é da ordem de 50%, independentemente do sexo. Ou seja, é um risco tão grande quanto o da DMD, mas neste caso sem possibilidades de um diagnóstico pré-natal. As grandes questões são: a) é ético realizar um exame de DNA sem o prévio consentimento dos interessados?; b) ou é mais ético não realizar esse exame, mesmo sabendo do alto risco para o feto e da possibilidade, neste caso, de se interromper a gestação com amparo legal?
Testes Moleculares em Doenças Dominantes de Início Tardio. Doenças Ainda sem Tratamento: o Exemplo dos Genes Dinâmicos
Em doenças como a Coreia de Huntington (CH) ou a Distrofia Miotônica de Steinert (DMS), os portadores, além de manifestar a patologia, têm um risco de 50% de vir a transmitir o gene defeituoso para a sua descendência. Na CH [causada por uma expansão do número de repetições (CAG)n no gene huntingtina (Kremer et alii, 1994)] o quadro clínico geralmente tem início após a quarta ou quinta década, e leva a uma demência progressiva e irreversível.
Na DMS [causada por uma expansão de repetições (CTG)n no gene da proteína-quinase da distrofia miotônica (Brook et alii, 1992)] a situação é um pouco diferente, pois o quadro clínico é muito variável. Indivíduos portadores do gene podem ter como único sinal clínico uma calvície precoce ou catarata em idade avançada, enquanto no outro extremo existem aqueles que apresentam um quadro grave, com início na infância, manifestado por: retardo mental, desenvolvimento, fraqueza e degeneração muscular e esterilidade no sexo masculino. A forma clássica, a mais comum, tem início em geral na idade adulta.
As questões éticas que se colocam são: quais seriam os prós e os contras de se testar crianças assintomáticas, descendentes de afetados, e saber de antemão se elas são portadoras do gene da CH e DMS? Os defensores do teste pré-sintomático argumentam que saber precocemente seria importante na escolha da futura profissão. Por exemplo, poderiam ser evitadas aquelas que requerem habilidade manual, pois é a primeira a ser comprometida no caso da DMS. Por outro lado, vale a pena angustiar-se antecipadamente e saber que se tem uma doença para a qual não existe cura? A pesquisadora Nancy Wexler, cuja mãe morreu de CH pergunta: você quer saber quando e como vai morrer?
Após inúmeras discussões éticas internacionais a respeito, o consenso foi não realizar testes pré-sintomáticos em crianças, com risco para doenças genéticas de manifestação tardia, para as quais ainda não há tratamento. O argumento mais forte é que ao testar crianças assintomáticas estaremos negando-lhes o direito de decidir, quando adultas, se querem ou não ser testadas. A nossa experiência pessoal mostra que essa conduta talvez seja a mais adequada, pois recentemente vários jovens adultos "em risco" foram informados de que já existia um teste de DNA para confirmar se eram ou não portadores do gene. Nenhum deles, no entanto, quis se submeter ao teste, o que mostrou que "viver na incerteza" talvez seja mais tolerável do que o risco de "ter certeza".
Genes de Risco para Doenças com Possível Tratamento: o Exemplo dos Genes BRCA1 e BRCA2 de Suscetibilidade para Câncer de Mama Hereditário
Mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 têm um risco de cerca de 80% de desenvolver câncer de mama e um risco aumentado para câncer de ovário (Ponder, 1997). A identificação desses genes levou vários laboratórios a oferecer testes de DNA (a custos altíssimos) à população feminina, supostamente para identificar as pessoas portadoras de mutações nesses genes e poder oferecer um tratamento preventivo àquelas com resultados positivos. Para as mulheres com história familiar de câncer de mama a detecção precoce pode ser muito importante para o tratamento preventivo. Entretanto, a questão ética é se esses testes devem ser feitos na população feminina em geral. Isso porque o risco global (life time risk) que uma mulher, sem história familiar, tem de desenvolver um câncer de mama ao longo da vida é da ordem de 10%, enquanto o câncer hereditário constitui apenas 1-2% dos casos. Assim, é dez vezes mais provável que, se uma mulher vier a desenvolver um câncer de mama, ele não esteja relacionado a mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. A questão ética é: será que uma mulher cujo teste não revelou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 sabe disso ou vai ficar tranqüila achando que está livre do risco de ter câncer de mama? Além disso, como existem centenas de mutações patológicas ao longo desses genes (e é ainda inviável testar todas elas), os laboratórios testam apenas as mais comuns, o que levanta outra questão: sabemos exatamente o que está sendo testado?
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E O PROBLEMA ÉTICO DA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO
Os problemas éticos relacionados com o diagnóstico pré-natal e interrupção de gravidez de fetos portadores de genes deletérios também têm sido amplamente discutidos. No caso de doenças letais (na primeira ou segunda décadas) ou as incompatíveis com uma vida independente (como aquelas que causam um retardo mental profundo), a decisão para um casal em risco de interromper uma gestação é mais fácil. Por outro lado, para aquelas de início tardio ou prognóstico indefinido, como a CH ou a DMS, o questionamento é enorme. Alguns indivíduos alegam que não querem transmitir esse gene para a sua descendência, mas será que não existirá uma cura definitiva nas próximas décadas? Ou, podemos garantir que um filho nosso terá uma vida saudável por muitas décadas?
É fundamental salientar que vários centros do mundo que realizam diagnóstico pré-natal mostraram que a legislação a favor da interrupção da gestação no caso de fetos certamente portadores de genes deletérios tem reduzido significativamente o número de abortos em famílias com risco genético. Isso porque muitos casais decididos a interromper uma gravidez no caso de um feto "em risco" deixaram de abortar quando o diagnóstico pré-natal de certeza comprovou um feto normal para aquela doença. De fato, no nosso laboratório, onde já foram realizados mais de 100 exames de diagnóstico pré-natal em casais em risco (para diferentes formas de distrofias musculares, atrofia espinhal e fibrose cística), somente cerca de 10% foram diagnosticados como afetados. Portanto, o diagnóstico pré-natal de certeza e a possibilidade do aborto terapêutico têm salvado inúmeras vidas normais. Por isso a importância fundamental de discussões éticas em torno da legalização da interrupção da gestação no caso de doenças graves ou incuráveis, pois as nossas leis certamente não têm acompanhado os avanços das pesquisas
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